“ELE ESTÁ DE VOLTA”: NEOFASCISMO, ENSINO DE HISTÓRIA E AS REDES SOCIAIS
No dia 13 de agosto de
2019, Joanna Schroeder, uma mãe norte-americana, fez uma postagem no Twitter. Na
publicação, expôs a sua preocupação com conteúdos extremistas de fácil acesso na
internet:
“Você tem filhos
adolescentes brancos? Tenho observado o comportamento online dos meus meninos e
percebi que a mídia social [...] [está] ativamente criando bases em
adolescentes brancos para transformá-los em supremacistas [...]. Veja como: é
um sistema que acredito ter sido criado propositadamente para desiludir os
meninos brancos, afastando-os das perspectivas progressistas/ liberais. Primeiro,
os meninos são inundados por memes com piadas sutilmente racistas, sexistas,
homofóbicas e antissemitas. Sendo crianças, eles não veem a nuance e repetem/
compartilham. Essa narrativa permite que os meninos se livrem da vergonha -
substituindo-a por raiva. E com quem está a raiva deles? Mulheres, feministas,
liberais, pessoas de cor, gays, etc. etc. [...] E NINGUÉM parece notar isso
acontecendo - exceto, ao que parece, mães de adolescentes que observam o
assédio bizarro que suas filhas sofrem [...] A propaganda faz com que pontos de
vista extremos pareçam normais por pequenas quantidades de exposição ao longo
do tempo - tudo com o propósito de converter as pessoas a pontos de vista mais
extremistas [...]” (SCHROEDER, 2019).
O post viralizou. Para se
ter uma ideia, até o dia 23 de abril do ano 2021, foram registrados 75,7 mil
Retweets, 14,2 mil Tweets com comentário e 171,3 mil curtidas. Tamanha projeção
chamou a atenção dos maiores veículos de imprensa do mundo. Foi nesse sentido
que a BBC News publicou a seguinte reportagem: “Mãe de adolescentes alerta para
perigos de extremismo online nos EUA”. O texto traz ainda o relato de que os “jovens
brancos nos Estados Unidos têm se mostrado particularmente suscetíveis ao risco
da radicalização online” e “um indício nesse sentido é o perfil dos suspeitos
dos últimos ataques a tiros no país: são jovens, brancos e do sexo masculino” (PRASAD,
2021).
De acordo com o relatório de
2017 da Liga Anti-Difamação “todos os assassinatos de extremistas nos Estados
Unidos foram cometidos por um supremacista branco ou extremista de extrema
direita”. O documento ainda chama atenção para as “evidências crescentes de
grupos de extrema direita de todo o mundo colaborando [...] online” para
promover “uma ideologia de ódio globalizada”. A infraestrutura ideológica na
Internet é usada para recrutar e para radicalizar os jovens, a partir de
discursos de ódio (SCHATZ, 2019).
Discursos que não ficam
apenas no mundo digital. Segundo reportagem publicada pela Valor Econômico, os
números de 2017 que mencionamos há pouco estão crescendo. Dois terços das
ocorrências terroristas nos EUA, em 2019, “foram realizadas por radicais
americanos da extrema direita. Essa parcela subiu para 90% nos cinco primeiros
meses deste ano” (LUCE, 2020). Outros extremistas acabaram sendo descobertos
antes de praticarem atos de violência. Dentre eles, estava Justin Olsen, um
frequentador do site iFunny. Olsen era dono de uma conta chamada ArmyOfChrist,
a qual usava para promover posts nacionalistas brancos e memes de extrema-direita
comuns em fóruns como esses. Segundo o BuzzFeed News, “nos 200 posts [...] se
enfureceu contra feministas, progressistas, a comunidade LGBTQ e minorias
religiosas e étnicas, e [...] pediu o estabelecimento de um etnostado cristão”.
O intrigante é a comunicação por meio de memes com conteúdo histórico, a
exemplo das Cruzadas, fantasiando sobre uma guerra particular como uma cruzada
religiosa entre cristãos e muçulmanos. Em outra postagem, ele escreveu: “O
imperialismo americano é a vontade de Deus e o hemisfério ocidental é um bom
começo. Eu morreria absolutamente para erradicar o socialismo e suas variantes”
(BRODERICK, 2019).
No artigo intitulado “How
YouTube Radicalized Brazil” (Como o Youtube radicalizou o Brasil), publicado
pelo The New York Times, no dia 11 de agosto de 2019, percebemos que esse
fenômeno chegou por aqui. A reportagem relata a atuação da equipe do Berkman
Klein Center de Harvard, a qual testou a ascensão meteórica da extrema-direita
brasileira na plataforma do YouTube. De acordo com o relatório produzido pelo
grupo, o novo sistema de inteligência artificial do YouTube passou a indicar
conteúdo extremista a partir de uma análise algorítmica do perfil do usuário,
criando uma espécie uma espécie de bolha, um comportamento esperado, por meio
de recomendações para outros vídeos com conteúdo semelhante. E os exemplos
mencionados pelo estudo não chegam a ser novos. Afinal, todos nós já ouvimos
falar desses nomes em algum momento.
Por exemplo, a publicação
menciona os Youtubers Nando Moura, Carlos Jordy e Bernardo Küster. Moura é
lembrado pelos “discursos coloridos e paranoicos de extrema direita, [nos
quais] acusou feministas, professoras e políticos tradicionais de travar
grandes conspirações”. Jordy por postar vários “vídeos acusando professores
locais de conspirar para doutrinar estudantes no comunismo”. E Küster por
acusar “falsamente acadêmicos de esquerda de conspirar para forçar as escolas a
distribuir “kits gays” para converter crianças à homossexualidade”. A
reportagem ainda alude ao “marco zero para a política do YouTube”: a sede
paulista do Movimento Brasil Livre, cujos “membros são jovens, de classe média,
de direita”. Um dele é Renan Santos, o coordenador nacional do grupo, e
entrevistado pela reportagem. De acordo com os autores, Santos “gesticulou para
uma porta marcada como ‘a Divisão do YouTube’ e disse: ‘Este é o coração das
coisas’. Dentro da sala, “oito jovens cutucaram um software de edição. Um
estava estilizando uma imagem de Benito Mussolini”. Por fim, o texto alerta que
os Youtubers extremistas e os seus conteúdos estão chegando às salas de aula: “a
influência política da plataforma é cada vez mais sentida nas escolas
brasileiras”. Os “professores descrevem salas de aula tornadas indisciplinadas
por alunos que citam vídeos de conspiração do YouTube ou que, incentivados por
estrelas de direita do YouTube, gravam secretamente seus instrutores” (FISHER; TAUB,
2021).
É importante entender e
demarcar que a extrema-direita brasileira se apropriou da linguagem virtual dos
grupos da alt-right. E isso é percebido na utilização de imagens com temas
históricos para promover a agenda nacionalista, branca, masculina e cristã. É o
que observamos na entrevista com o medievalista brasileiro Paulo Pachá,
divulgada pela Agência Pública, na qual alertou para o fascínio dos extremistas
com uma referência cruzadista, expressa, principalmente, nas inúmeras
referências aos cavaleiros medievais, em especial, os Templários. Um emprego
que vem “estampando camisetas, textos, tatuagens e tweets da extrema direita
mundial desde que Donald Trump resolveu se lançar candidato à presidência dos
EUA, em 2016” e que no Brasil “tem sido utilizada por bolsonaristas” (OLIVEIRA;
RUDNITZKI, 2019).
Fonte: https://twitter.com/rosedbarros/status/1048926907113381889
A imagem foi retirada do perfil
do Twitter de uma Youtuber. Aparentemente inocente, não diz nada mais do que
nós apoiamos lutaremos por nosso país. Mas, como professores de História, não podemos
deixar de atentar para a existência de diversas camadas ideológicas que dizem
mais do que essa interpretação, digamos, um pouco rasa: há nacionalismo, há
chauvinismo e há Cristofascismo. A começar pelos dizeres: salvar o Brasil de
quem? Dos grupos privilegiados por governos anteriores: os negros, as mulheres,
os indígenas e os LGBTQ+. Uma luta que virou patriotismo cristão, coisa que
certamente não existia na Idade Média. Falamos, portanto, de um patriotismo religioso,
voltado à criação de um etnoestado cristão, branco e masculino.
Este texto, portanto, tem
dois objetivos: o primeiro é servir como alerta para os professores de História
de que precisamos olhar com mais atenção para a internet. E, sem segundo,
apresentar uma sugestão de como trabalhar a relação entre as redes sociais e a
extrema-direita em sala de aula.
Metodologia e
literatura
Segundo Marc Ferro (1992,
p. 86), “os filmes, imagens ou não da realidade, documento ou ficção, intriga
autêntica ou pura invenção, é história”. Dentro dessa perspectiva, o cinema deve
ser entendido como um produto da sociedade, uma imagem-objeto, para usarmos as
palavras de Ferro. Sendo assim, empreenderemos a análise do filme “Ele está de
volta”, como uma fonte histórica que fala menos do tema filmado e mais da
sociedade que o produziu. A essa noção de Ferro somamos a leitura de Abud
(2003) que defende a função de agente da história do cinema, pois os filmes têm
a capacidade de transmitir conceitos e valores do seu tempo, atuando como um
produtor de sentidos. O nosso filme visto por esses autores, portanto, tem dois
papéis no ensino de história: agente e documento.
Sendo assim, não avaliaremos
o filme “Ele está de volta” como uma produção sobre o nazismo da segunda guerra
mundial. Mas como um produto da nossa sociedade contemporânea, a qual, como
vimos, é marcada pela circulação do neonazismo, uma forma nova do antigo
nazismo, com suas próprias especificidades. E qual é a diferença entre os dois
conceitos:
“Do ponto de vista
cultural, o nazismo na Alemanha usou ostensivamente as artes e a propaganda
para atingir o público [...]. Para tal, suprimiu as liberdades democráticas
existentes. Os nazistas consideravam a democracia como a ‘muleta dos fracos’.
Os fortes e resolutos ‘não precisam de democracia’. Todos os meios de comunicação,
como rádio, cinema e jornais, passaram para o controle dos nazistas. O objetivo
era destruir impiedosamente os oponentes ao regime e consagrar como heróis os
seus apoiadores. [...] Os nazistas contemporâneos desviaram o foco da
maledicência, de ódio e de preconceitos contra os judeus para os negros
africanos [...]; para os pobres em todos os países; povos nativos da América
Latina e atuais indígenas; mulçumanos e refugiados de guerra e, também, a
mulher moderna que conquistou certa independência (MOURA, 2020).
Elucidada a diferença
entre nazismo e o neonazismo, convém ainda prestar alguns esclarecimentos antes
de continuarmos o texto. Dividiremos esse momento em dois: o primeiro diz
respeito ao aspecto metodológico do texto e o segundo ao acesso aos materiais
aqui trabalhados. No que tange à metodologia, escolhemos trabalhar o filme a
partir do diálogo com notícias de jornais e revistas, e não com artigos
científicos. É claro que tomamos o cuidado para que essa seleção não prejudicasse
a nossa análise, pois a escolha das reportagens foi feita com base em artigos
científicos e livros da área. Já no que se refere ao segundo esclarecimento,
existe a oportunidade dos nossos leitores terem acesso ao filme e a um material
montado para esse fim, bastando apenas clicar nessa palavrinha que está em negrito. Existe igualmente a possibilidade de ter acesso às notícias, mesmo não sendo
assinante de algum desses portais online.
Sobre a utilização de
jornais em sala de aula, dialogaremos com a leitura de Faria (2009; 2011). Para
a autora, a metodologia que envolve o trabalho com os jornais em sala de aula tem
a vantagem de ofertar contato direto com uma fonte histórica, o jornal, o que
leva “o aluno a conhecer diferentes posturas ideológicas frente a um fato, a
tomar posições fundamentadas e aprender a respeitar os diferentes pontos de
vista” (FARIA, 2009, p. 11).
Ele está de
volta
O filme “Ele está de
volta”, em alemão “Er ist wieder da”, classificado
como comédia, foi escrito e dirigido por David Wnendt, com base
no romance homônimo de Timur Vermes. Estreou na Alemanha a
8 de outubro de 2015, e no Brasil a 9 de abril de 2016
pela Netflix (ER IST WIEDER DA, 2021). Basicamente, o enredo mostra
como seria se Adolf Hitler voltasse para a Alemanha do ano 2014 e, entre várias
selfies, percebemos que o Führer seria bem-vindo. É importante mencionar que essas
cenas de apoio são reais. Por fim, entendemos ainda o filme como uma crítica à
indústria cultural e à mídia comercial, as quais, para assegurarem audiências
mais amplas, muitas vezes, legitimam discursos de ódio.
Começando
a nossa análise, é importante demarcar que não vamos avaliar o filme seguindo a
sua cronologia. Pelo contrário, dividimos a produção em dois eixos temáticos, a
saber, 1. As mídias; 2. O papel da História.
No
que tange às mídias, a primeira observação a ser feita é a sutil sugestão iconográfica
entre o logo da emissora de televisão, responsável pela ascensão de Hitler, e o
Youtube. Vejamos:
Fonte: https://youtu.be/Mdvtsy41o1A
Fonte: http://aldeia.biz/blog/social-media/conheca-os-10-videos-mais-importantes-youtube/
Para
além do detalhe vermelho que se destaca nas logomarcas das duas empresas, a
relação entre os pronomes “my” e “you” não deixa dúvidas de que existe a
intencionalidade em ligar a ascensão midiática de Hitler ao fenômeno do
Youtube. Tal associação não ocorre somente nesse momento. Em outra ocasião do
filme, fica claro o papel dessa rede na promoção do nazista, quando diversos
Youtubers aparecem comentando as falas do Führer em uma linguagem jocosa,
acompanhada de muitas animações. Um detalhe chama atenção, a fala de um
youtuber: “você não sabe se é para levar a sério ou dar risada?”. Alguns se
questionam se a Alemanha está preparada para esse tipo de humor, enquanto
outros ponderam que muita coisa do que Hitler diz é verdade. Vejamos:
Fonte: https://youtu.be/T8Vshej-0-o
Fonte: https://youtu.be/T8Vshej-0-o
O
elemento jocoso é o que nos importa. Em uma entrevista à BBC News Brasil, o professor
de Filosofia Moderna e Contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio), Rodrigo Nunes, afirmou que essa tática é uma das
principais armas da extrema-direita nas redes. Conhecida como troll, é a
linguagem utilizada por Donald Trump e Jair Bolsonaro e que consiste em um jogo
dúbio, “entre o que é brincadeira e o que é sério". Na mídia, isso acontece
com a discussão de temas que são polêmicos, a partir de comentários racistas,
homofóbicos ou machistas, objetivando provocar a reação de indignação, garantindo
visibilidade. Nunes avaliou ainda que Bolsonaro já adotava a tática em sua
carreira como parlamentar, pois “era um político completamente sem importância,
cuja única visibilidade vinha disso" (VALLONE, 2020).
Fonte: https://conteudo.imguol.com.br/blogs/2/files/2018/10/bolsonarosuperpop2.jpg
Fonte: https://conteudo.imguol.com.br/blogs/2/files/2018/10/bolsonarocariocamito-300x243.jpg
As
duas imagens ilustram bem como a ascensão de Jair Bolsonaro pode ser entendida
em diálogo com o filme. Ao adotar a tática troll, o então candidato à
presidência tornou-se famoso. Como se fosse um comediante, virou um fenômeno da
internet e chamou atenção da televisão. Na primeira foto, aparece no programa
da Luciana Gimenez performando o sinal que marcou toda a sua campanha: uma arma
com os dedos. Aparentemente uma brincadeira extrovertida, este sinal deve ser
entendido para além do caráter cômico: é uma alusão às suas bandeiras políticas
extremistas, voltadas para a eliminação dos seus adversários, tal como ele
mesmo disse, quando afirmou "Vamos fuzilar a
petralhada", em campanha no Acre. (RIBEIRO, 2018). A segunda imagem é do
humorista “Carioca” do programa “Pânico na TV”. A imitação fazia parte de um
quadro intitulado “Mitadas do Bolsonabo”, com dezenas de episódios, nos quais
dizeres racistas, homofóbicos e machistas eram apresentados como humor.
No filme, um funcionário
da emissora em que Hitler trabalha se incomoda com a exposição de ideias
nazistas. Revoltado, performa a Hitlergruß e prossegue com dizeres “uma grande
porcaria nazista” “e o povo gritando: ‘Hurrah!”. Insatisfeito, questiona a
diretora se ela estava realmente ciente do que estava promovendo, pois, para
ele, as pessoas gostam de Hitler por concordarem com tudo o que ele diz. Por
fim, afirma que a promoção dessa “merda nazista” é porque diretora assumiu o
papel de Goebbels. O intrigante neste trecho é justamente a associação entre a
propaganda nazista da década de 1930 com o papel das mídias sociais. O que fica
claro é a relação de casualidade: as redes são as principais responsáveis pela
normalização desses discursos.
Cabe mencionar ainda outro
elemento. As pessoas gritando “Hurrah”. Essa expressão era muito utilizada
pelos partidários de Hitler para rememorar os espartanos. Uma relação também
vista aqui no Brasil:
Fonte: https://cdn.jornaldebrasilia.com.br/wp-content/uploads/2020/06/300-protesto-stf-1024x683-1.jpg
De
acordo com Dip e Franzen (2020), na Europa, os movimentos de extrema-direita
fazem frequentemente referência ao filme 300 e à Batalha das Termópilas,
entendendo o combate heroico dos espartanos contra persas como a atual luta dos
“europeus verdadeiros” contra os “invasores” refugiados. No Brasil, o uso do
discurso do sacrifício e do “sangue e suor” pela pátria tem relação direta com a
luta pessoal de Jair Bolsonaro: contra os comunistas, os LGBTQ+, o movimento
negro e assim por diante. O grupo de extrema-direita brasileiro ainda é
liderado por Sara Winter, “homônimo ao de uma socialite britânica que foi espiã
de Hitler e membro da União Britânica de Fascistas”. Na foto, observamos os
militantes aparecem usando uma máscara de caveira. “A máscara, que também é
vendida no Brasil, é muito popular na Europa e nos Estados Unidos entre neonazistas.
A máscara de caveira virou uma estética universal fascista.”
Considerações finais
Por
fim, passaremos ao papel da História. Mas antes lembremos da famosa do
historiador britânico Peter Burke de que “a função do historiador é lembrar a sociedade
daquilo que ela quer esquecer". E, de fato, os historiadores foram os
primeiros a apontar o dedo a Bolsonaro e dizer: “ele está de volta”. Não é à
toa que os profissionais da área se tornaram objeto de críticas por parte do
presidente e dos seus apoiadores. Bolsonaro, candidato à época, foi ao Jornal
Nacional defender uma visão deturpada do Golpe Militar de 1964 e, ao fazer
isso, deixou claro o seu objetivo ao dizer: “deixa os historiadores para lá”
(BOLSONARO, 2018). E mais, os seus apoiadores nas redes iniciaram conjuntamente
uma campanha para descredibilizar os professores. Basta digitar em algum
mecanismo de pesquisa as palavras “o seu professor de História
mentiu”.
Diariamente
os professores de História precisam disputar as suas narrativas didáticas com as
das redes sociais. De tal forma, queremos terminar este texto propondo o
exercício de trabalhar a História na sala de aula aproximando esses dois
mundos. Para tanto, é preciso pensar em estratégias de aprendizagem que utilizem
as redes em sala de aula que busquem: a) compreender as comunidades virtuais
como um ambiente onde narrativas históricas estão em disputa; b) promover a
autonomia perante à avaliação de tais narrativas; c) entender como grupos
extremistas manipulam essas comunidades virtuais como ferramenta ideológica
para a promoção do ódio contra pessoas.
No
filme, a História assume o papel de uma senhora. Na cena, Hitler é convidado
para jantar na casa da namorada de Fabian Sawatzki. De ascendência judia, a
moça reside com a sua vó, uma sobrevivente do holocausto. Essa senhora já havia
aparecido anteriormente como portadora de “deficiência mental” e, mesmo nessa
condição, não demora a reconhecer a voz de Hitler. Ela então fica muito nervosa
e expulsa o Führer da casa. Enquanto isso, a neta tenta dissuadi-la,
argumentando que o personagem ali não era o verdadeiro Hitler, mas um
comediante. A senhora então diz: “pense na sua família. Tanta gente. Todos eles
mortos. [...] era câmara de gás!”. Encarando-o mais de perto continua: “ele não
mudou nada, diz as mesmas coisas. No começo as pessoas também davam risada.
[...] eu sei quem você é, nunca me esqueci”.
Fonte: https://youtu.be/6vIUgNRdCbU
Fonte: https://youtu.be/6vIUgNRdCbU
Sabemos
que no Brasil há obstáculos relacionados à cobertura da internet. Dificuldades
que vão desde o acesso doméstico ou a existência de uma boa conexão em muitas
unidades de Ensino. Em outros casos, existe o preconceito dos educadores para
com as redes, as quais são bloqueadas nas escolas. Todavia, não podemos
esquecer que, mesmo sem o acesso contínuo, é fato que os alunos já estão
familiarizados com essas redes sociais e com o linguajar digital. Porém, eles não
são educados a perceber como os conteúdos presentes, mesmo quando estão ali
apenas para parecerem piadas, devem ser criticados e avaliados de forma
científica, com uma metodologia.
E
esse trabalho se torna cada vez mais urgente, ao levarmos em consideração o
conteúdo deste texto: a extrema-direita global promove uma verdadeira guerra de
desinformação no sentido de implementar a sua agenda extremista e ideológica, a
qual vem ressuscitando alguns Hitlers.
E
uma característica do Hitler e de seus seguidores é justamente o discurso
antidemocrático. Por exemplo, no filme, após a
consolidação da sua imagem nas mídias, o Führer vai a uma manifestação de
neonazistas, os quais, segundo ele, são as pessoas “determinadas a dar
continuidade ao seu trabalho”. Chegando ao encontro dos seus partidários,
inicia uma conversa na qual dialoga com um jovem a respeito de pedófilos e dos
problemas com a democracia, um sistema, segundo o rapaz, que falta quem dê a
palavra final. E Hitler responde que esse é exatamente o tipo de democracia que
ele defende.
Fonte: https://youtu.be/UDdvJhuWJHU
Fonte: https://youtu.be/UDdvJhuWJHU
Para
terminar nossa reflexão com mais um exemplo de publicação nas redes, além da referência
templária antidemocrática, mencionada na introdução deste texto, comentaremos mais
meme de internet que ilustra muito bem como ataques ao sistema democrático são
promovidos em diálogo com a História e com a aparência de “brincadeira”.
Vejamos:
Fonte: https://twitter.com/loukanos_/status/1380994032713748485/photo/1
A
essa imagem, adicionamos os comentários feitos a ela. Louvores à “autocracia”, ao “governo de um só”, assim como ataques à República e à
Democracia por serem “coisas desprezíveis”. O interessante é perceber que o autor da
postagem tenta fazer uma análise do meme. Ele diz: “A República [...] tinha muitos
erros nas estruturas”. O
erro apontado, no caso, pode ser facilmente percebido como um ataque direto às
democracias modernas, uma vez que a República Romana do meme é entendida como o
governo do povo e isso, em uma visão extremista, é muito ruim. Basta lembrarmos
dos assuntos comumente trabalhados no conteúdo República Romana: Tribunos da
Plebe, Reformas Agrárias, Revoltas de Escravos; Revoltas dos Italianos e a
ascensão de plebeus ao exército. Conteúdos que muito se aproximam do debate
político brasileiro. Afinal, acabamos de eleger um Presidente que ataca diretamente a democracia e que não poupa tempo em elogiar a Ditadura justamente por preferir o autoritarismo. E o
intrigante é que no post há um comentário de uma agência de Informações na internet que aproveita o tema romano para atacar o STF, dizendo que
os juízes dessa corte deveriam ver a imagem para aprender, antes de viramos uma Pompéia.
Por
fim, findamos nosso texto com um convite aos professores e professoras de
Ensino Básico e Médio: procurem conhecer como o conteúdo da História ensinada
nas escolas aparece nas redes. Busquem trabalhar as aulas a partir desse
cotidiano tão habitual dos jovens. Pois é lá que eles estão se informando mais
sobre a História do que nas salas de aula.
Referências biográficas
Dr. Ygor Klain Belchior,
professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade de Campanha, e
líder do Laboratório de Estudos e Pesquisas em História Antiga, Medieval e da
Arte (LEPHAMA).
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BOLSONARO diz ao JN que
criminoso não é 'ser humano normal' e defende policial que 'matar 10, 15 ou
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Acesso em: 04 abr. 2021.
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ResponderExcluirQue texto importante para nós professores de História. Suas colocações sobre como os jovens tem sido introduzidos a esse universo global da extrema direita tem sido uma constatação que tenho feito há pelo menos dois anos, sobretudo porque muitos dos nossos alunos trazem consigo esse discurso - ah prof é brincadeira. Inclusive, comecei a discutir feminismo na sala quando um aluno iniciou uma discussão sobre uma fake news da manuela d'avila na época tratando o feminismo como uma piada e desculpa de mulher. Daí percebi a gravidade da situação que nos encontramos. Quero saber contigo como você avalia o cenário atual em relação ao bolsonarismo e a cooptação dos jovens através das redes sociais? E nessa guerra cultural (parafraseando o prof joão cesar de castro rocha) no qual enfrentamos você acredita que nos professores deveriamos no caso ter uma formação para literacia informacional? Eu tenho essa preocupação porque talvez penso eu a História somente não de conta de estar sozinha nessa batalha? Qual sua opinião. Atenciosamente - (agora sim, com o meu nome certo, sempre esqueço, rsrs!
ResponderExcluirBruna Carolina Marino Rodrigues
Oi, Bruna. Primeiro, obrigado pela pergunta e por ter compartilhado o pequeno relato. De fato, a internet vem educando os nossos jovens. Isso, na verdade, era um efeito esperado do produto - ela é feita para divulgar informações. Todavia, o que vem sendo feito é um trabalho de divulgação de inúmeras informações sem nenhum tipo de filtro. É possível gravar praticamente qualquer coisa no Youtube e quanto mais polêmico, melhor. Basta ver a besteira que o Constantino falou de sua filha: ele não culparia um possível estuprador de sua filha, mas cobraria ela por estar em um ambiente que não é de moça de família. Isso não é só terrível, mas é um caça like, dislike, comentários positivos e comentários negativos. Por não haver filtro, isso fica lá gerando números para o algoritimo e dando dinheiro para uma pessoa dessas. Enfim, o papo está ficando longo - qualquer coisa continuamos - e o que estou querendo dizer é: não há filtro porque é do interesse da empresa e de quem passa desinformação. Gera lucro. Nós, professores, podemos é começar a denunciar esses conteúdos dentro das nossas disciplinas com base no conteúdo científico da disciplina. É tipo: vou explicar o que está errado nisso. Ou onde está a manipulação. Só que para isso precisamos reverter outra coisa que é bem capitalista: nunca arme um professor, principalmente da escola básica. Os alunos sem uma educação de qualidade são os próximos consumidores. Seria legal se a gente tivesse condições de ter tempo para estudar mais e ter um treinamento legal nas ferramentas digitais. A guerra cultural é travada nas redes. Abraços
ExcluirObrigado, Prof. Ygor e Bruna Rodrigues pelo debate! Me fez pensar muitas coisas...
ExcluirCaro Prof. Ygor Belchior, uma questão que fiquei pensando ao longo da leitura do seu texto: como você discutiria o anacronismo histórico dentro desse debate? Por fim, muito obrigado por compartilhar esse texto e demonstrar teórica e metodologicamente o trabalho de um historiador e professor de História. Como professor da área, confesso que aprendi bastante com sua narrativa, grato pelo convite!
ResponderExcluirCaro Luiz, obrigado pela leitura e pela pergunta. Bem, eu decidi que o anacronismo, quando bem trabalhado e bem controlado pelo historiador, é uma ferramenta bem legal para o Ensino. Gosto muito de partir deles: mostrar, por exemplo, como o cavaleiro medieval bolsonarista não tem nada com um templário antigo. E há textos muito legais sobre esse assunto. Recomendo os trabalhos do Prof. Bruno Uchoa para medieval. E, é claro, tem algumas coisas que eu rabisquei. Não são lá tão boas, mas pode conferir por sua conta e risto na minha conta do academia.edu e no meu canal youtube.com/LEPHAMATV
ExcluirObrigado, Prof. Ygor! Concordo que o anacronismo nesse sentido se torna uma ferramenta bem legal, desconstrutiva e crítica à outras narrativas. Grato também pelas indicações. Vou acessar seus canais! Abraços
ExcluirAbraços, Luiz!
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ResponderExcluirOlá!
ResponderExcluirTexto de uma urgência ímpar, sem dúvida.
O filme, tal qual a situação brasileira hodierna, seria cômico, se não fosse trágico.
De que forma podemos transformar a "senhora portadora de 'deficiência mental'" em porta-voz denunciante das incongruências, anacronismos e má-fé de "tudo isso que está aí"?
Grato pela atenção.
Saudações!
Willian Spengler
Eu sou a senhora com muito orgulho. Acredito que o papel do Prof. de História está cada vez mais próximo de um denunciante do que de um calendário, como era antigamente. Abraços
ExcluirO revisionismo histórico faz parte do trabalho do historiador e do debate historiográfico desde que respeite o estatuto científico da história e seu compromisso com a verdade. Como separar o revisionismo histórico do revisionismo ideológico dentro de uma sala de aula ou em espaços de debate/disputa mais amplos, a exemplo das redes sociais?
ResponderExcluirAtte,
Auricharme Cardoso de Moura
Oi, Aurichame. Legal a pergunta. Eu só acho que não tem como separar os dois. Afinal, a revisão é totalmente ideológica. É preciso ter muito domínio da ideologia sobre a qual vc se debruça, nem que isso te leve aa ter gastrite. Tem que conhecer como o extremista pensa e fala para entender como ele manipula o passado. Abraços!
ExcluirOlá, professor, faço das palavras dos participantes acima as minhas, seu texto é de urgência ímpar. Porém, ressalvo que, como experiência vivida e ouvida, nas unidades privadas de ensino é "proibido" que o professor de história tome partido deste ou daquele partido. Nas aulas de História, não podemos levantar debates que vão de encontro com os interesse dos pais (alienados) que levantam a bandeira de classes privilegiadas das famílias cristãs. Penso, que a retaliação é vivida por diversos colegas de profissão, que se submetem a neutralidade por questão de sobrevivência.
ResponderExcluirLidiane Álvares Mendes
Mestra em História/UFAM
Lidiane, eu concordo com todas as suas palavras. Acredito ainda que p único espaço para isso seja o acadêmico e público. É por isso que não culpo nenhum professor de história pelo fascismo que vivemos. Nós nunca falhamos! É preciso mudar a sociedade para que possamos ao menos ter a chance de ensinar. Grande abraço!
ExcluirOlá Ygor, tudo bem?
ResponderExcluirPrimeiro, parabéns pelo seu texto, sem dúvida ele levanta questões importantes não apenas para a sociedade, mas, também, mas para o ensino de história.
Fiquei pensando em duas questões durante a leitura e compartilho com você.
A primeira diz respeito ao que você pensa sobre as formas de controle social sobre as plataformas (facebook, youtube, instagram), depois da eleição de Trump o facebook parece ter mudado algumas posturas, atuando de maneira mais efetiva no controle das fakenews, embora seja claro que ele lucra muito com os anúncios enganosos. Como você entende esta questão, existe alguma forma de controle seguro das redes, sem que deslizemos para a censura e coisas do tipo?
Minha segunda questão diz respeito ao ensino de história e os enfrentamentos entre o conhecimento do professor cientista social e este tipo de "conhecimento" ideológico trazido pelos alunos. Será que existe alguma saída? Penso sempre que também devemos mostrar o conteúdo ideológico deste conhecimento entendido como neutro. Você acha este um bom caminho?
Novamente, parabéns pelo trabalho!
Att,
David Antonio de Castro Netto
UNESPAR - Campus - Paranávai/PR
Olá, David. Obrigado pelas perguntas. Sim, as plataformas estão mais atentas às fake news. Porém, não sei se elas vão conseguir anular as manipulações da História. Negacionismo contra a vacina é uma coisa que é fácil ver o problema. Agora, o negacionismo histórico entra naquele debate: é minha opinião, não me censure. Quanto à segunda pergunta, concordo com você que devemos mostrar onde está o conteúdo ideológico e que o que eles pensam não é neutro. Isso já seria uma boa lição. Grande abraço!
ExcluirPrezado Igor,
ResponderExcluirQue trabalho fantástico, com base na pesquisa e diante de tantos desafios na atualidade de que forma o ensino de História pode contribuir para esse debate?
Olá, Ane. O Ensino de História é a chave para que possamos enfrentar os desafios do nosso cotidiano. Acredito que ele tem muito a contribuir.
ExcluirMuito importante a reflexão feita no texto, me fez lembrar que quando eu comecei a ter acesso aos meios de comunicações digitais eu acreditava em tudo o que via e achava "certo" muitos atos preconceituosos feitos como piada.
ResponderExcluirMas com o passar dos anos eu fui desconstruindo isso, e hoje em dia uso a internet como ferramenta de ensino, aprendi filtrar muitos conteúdos que não acrescentam nada para minha aprendizagem.
Mas a minha pergunta é: como devemos conciliar o ensino de história como forma de desconstrução para as alunos que durante um bom tempo teve ideias formadas por apenas memes na internet, algo que seria visto como "sem graça" em relação aos memes?
Valéria Costa Fortunato - UFMS
Olá, Valéria. Obrigado pela leitura e pela pergunta. Olha, acredito que temos que mudar um pouco a nossa linguagem de ensino. A escola tradicional, do livro didático engessado, não dá mais. Eu sei que nunca teremos os mesmos mecanismos que os criadores de memes e nem devemos ser youtubers, mas é importante que os professores aprendam as novas linguagens. E para isso temos que repensar até mesmo as nossas carreiras: temos tempo para aprender algo novo? Abraços
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