João Gilberto Neves Saraiva

 

PESQUISA CENSITÁRIA E FORMULÁRIOS ONLINE NO ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

 

A realização de recenseamentos é uma prática com raízes históricas profundas. Os grandes impérios da Antiguidade, como Roma e China, já utilizavam pesquisas censitárias para saber número de habitantes, sexo, profissão, renda, entre outros dados com o objetivo de nortear suas ações. Essa prática continua desde então, conhecer em detalhes a distribuição social, étnica, espacial, econômica, etc. das populações é cada vez mais uma informação vital para a administração dos Estados. No caso do Brasil, data do terço final do século XIX – na época de D. Pedro II – os primeiros censos da população brasileira. Ao longo do século XX, notadamente após a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 1936, a prática tornou-se sistemática e passou a abranger temas cada vez mais amplos (IBGE, 1987, p. 20). A cada virada de década, a população brasileira é recenseada em pesquisas com temas diversificados, além de amplas e variadas amostragens. Dada a pandemia do coronavírus desde o início de 2020, bem como diversas questões políticas e econômicas, o censo desta década ainda não foi realizado. Recentemente, o governo federal anunciou que ele também não será feito em 2021 (ROCHA, 2021). Isso é muito preocupante para o planejamento e execução de políticas públicas em áreas como a saúde, a educação, o uso de recursos energéticos e hídricos, entre outras.

 

Esse contexto motivou a utilização da pesquisa censitária em uma atividade da disciplina de História na Escola Municipal Professora Ivanira de Vasconcelos Paisinhos (Parnamirim/RN) e sua adaptação durante o ensino remoto emergencial. O trabalho mobilizou os alunos dos 7º, 8º e 9º anos, sete turmas do Ensino Fundamental Anos Finais matriculados na instituição no ano letivo de 2020. A atividade consistiu na realização de um censo sobre o acesso, preferências e usos que membros diretos da comunidade escolar, além de parentes e vizinhos dos alunos fazem da Arte, Cultura e Tecnologia. Uma vez que a instituição tem matriculados estudantes de localidades variadas de Parnamirim e também de um município vizinho, São José do Mipibu, as pesquisas abarcam recortes urbanos e rurais diversos. Dado a conjuntura de distanciamento social, o recurso utilizado para realização das entrevistas e agrupamento dos dados obtidos foi o Google Formulários.

 

A atividade se vinculou em um projeto mais amplo de uso de tecnologias digitais na escola (SARAIVA, 2020). O Projeto Arcada – https://0jonjo.github.io/arcada/ – trata da produção, atualização e uso de websites e blogs no ensino e na aprendizagem de História na Educação Básica. É um projeto que atua sobre duas frentes, de um lado aspectos técnicos e pedagógicos de produção da produção de ferramentas digitais, do outro lado, examina a experiência do seu uso no ensino híbrido (e no ensino remoto) na disciplina de História.

 

Há diversos modos de utilização dos formulários online no Ensino de História. Comumente utiliza-se essas ferramentas nas escolas para que os alunos registrem respostas objetivas e dissertativas, mas há outras possibilidades. O uso educacional do RPG, game, revisões guiadas, aula expositiva interativa, análise de fontes históricas e outros (CARVALHO, 2020; HISTORIAR-SE, 2021). A escolha dos formulários online para a pesquisa censitária, é consonante com competências diversas da Base Curricular Comum Nacional (2018, p. 9, 357 e 402) para Educação Básica. Elas afirmam a necessidade da compreensão crítica e do domínio das linguagens das culturas e tecnologias digitais. Nesse sentido, ao propor uma pesquisa censitária mobilizando ferramentas digitais, seja através de smartphones ou desktops, o trabalho se aproximou da perspectiva dos letramentos digitais (DUDENEY; HOCKLY; PEGRUM, 2016, p. 21). O uso do plural identifica que existem múltiplos letramentos digitais interconectados. No caso da atividade em questão, os alunos exerciam ações que envolviam os letramentos impressos, em hipertextos, em dispositivos móveis, e o em informação. O viés é que o simples acesso a um smartphone ou outra tecnologia digital, não torna os alunos conscientes e proficientes nas suas diversas possibilidades de uso, seja ele comunicativo, laboral, educacional, etc. É necessário efetivos letramentos, e a escola tem um papel fulcral na construção desses saberes.

 

Uma parcela considerável de alunos da escola – entre um quarto e um terço – não possuem acesso à Internet, faixa semelhante à identificada pelo IBGE (2020) para a Região Nordeste como um todo. Dentre os alunos que têm acesso, parte considerável não tem possuem computadores de mesa ou notebooks, nem disponibilidade de uso de banda larga (seja por cabo, rádio ou 4G). A maior parte utiliza smartphones – seja de uso individual ou compartilhado entre familiares – e muitos dependem exclusivamente de pacotes de telefonia (SARAIVA, 2020). Dada essa conjuntura, se optou pelo Google Formulários por questões diversas. Uma é que se trata de uma ferramenta leve (gasta poucos dados) e que não exige cadastro para responder (só o do professor, na criação dos formulários), outra é que ela é responsiva (acessível de qualquer formato de tela). Há também o fato de boa parte dos estudantes já terem uma experiência prévia mínima com a ferramenta necessária para o uso na atividade. Como uma possível solução para os alunos sem acesso à internet, foram disponibilizadas na escola formulários em papel que depois foram convertidos para a versão digital.

 

A escolha das temáticas Arte, Cultura e Tecnologia como mote da pesquisa censitária vai de encontro ao tema anual da instituição no ano letivo de 2020. A equipe pedagógica da escola, ainda antes da crise global provocada pela Covid-19, escolheu esses três eixos para nortear e integrar os trabalhos das nove disciplinas do Ensino Fundamental Anos Finais. O professor fez a opção por organizar o censo de acordo com temáticas que já estavam sendo estudadas em cada um dos anos letivos. Nesse caso, os 7º anos estavam examinando a importância e múltiplas expressões da Arte no Renascimento, já os 8º anos aprendendo o papel do Iluminismo no desenvolvimento das Ciências e os 9º anos inteirados nas questões de Identidade e Cultura Negra do Brasil Contemporâneo.

 

O plano inicial da atividade era discutir a importância das pesquisas de censo e realizar um histórico do tema mobilizando dados de época dos temas que eles estavam estudando, só então apresentar a metodologia da pesquisa censitária. A ideia era que os alunos contribuíssem com o delineamento do tema e escopo da pesquisa, por exemplo, delimitando que questões e opções de resposta fariam parte ou não dos questionários. A produção de um censo exercita as perguntas básicas da produção do conhecimento histórico e do pensamento científico no geral: O quê? Onde? Quando? Como? E especialmente: por quê? A produção dos questionários foi sensivelmente prejudicada por conta do fim das aulas presenciais. A escola é o espaço central de encontro e debate dos alunos e, como visto, o acesso à Internet é precário para muitos estudantes.

 

Diante desse cenário, o docente teve de organizar as questões iniciais a partir de respostas de atividades anteriores em que os alunos foram indagados sobre a importância dos temas do censo para si próprios. As turmas de 7º ano, por exemplo, entrevistaram primeiro colegas, a seguir parentes e vizinhos sobre idade, local de moradia, preferências sobre tipos de obra de Arte, a relevância da arte para sua vida, a existência no bairro e na cidade de espaços como museus, teatros, cinemas, etc., mídias que utilizam para acessar obras e espetáculos artísticos, o que poderia ser modificado para ampliar acesso da população as Artes, entre outras. O objetivo era mapear o modo como as pessoas enxergam, como vivem e o que pensam sobre cada um dos temas.

 

A conjuntura de isolamento social tornou necessário diversas outras adaptações nas atividades. O escopo do censo foi alterado, ele abarcava inicialmente as pessoas que estudam e trabalham na escola no turno dos estudantes, o vespertino. No contexto do ensino remoto, a pesquisa passou a ser realizada entre colegas da escola e parentes e amigos sem vínculo direto com a instituição. O enfoque anterior ensejaria uma análise mais aprofundada do público da escola, a alteração proporcionou um exame menos autocentrado, uma vez que ampliou e diversificou o recorte demográfico.

 

Uma das mudanças de maior relevância com a pandemia foi a priorização de ferramentas digitais para obtenção, armazenamento e análise inicial dos dados. Conforme já explicitado, a opção pelo Google Formulários se deu por conta - entre outros aspectos - o fato do professor e alunos já terem alguma intimidade com o serviço. Após o fim do ensino presencial, ele passou a ser utilizado na escola em atividades de várias disciplinas. Além disso, este formulário online específico, tem embutido algumas ferramentas de reunião e exibição dos dados, porcentagens e gráficos simples e a possibilidade de exportá-los como tabela. Foi necessário, é claro, adaptar o seu uso para os objetivos da atividade. Isso incluiu a definição de respostas dissertativas curtas (por exemplo, para nome do entrevistado e local de moradia) ou mais longas (para coleta de opinião) e respostas com uma ou múltipla escolhas possíveis a depender do questionamento. Os nove questionários utilizados (3 por ano letivo) também foram configurados para receber centenas de respostas cada um a partir de diversos dispositivos.

 

A primeira parte do trabalho consistiu em os alunos responderem eles próprios questões sobre as temáticas do censo. Essa amostragem permitiu identificar saberes e práticas dos estudantes dentro e fora da escola envolvendo Arte, Cultura e Tecnologia. Em um segundo momento eles entrevistaram colegas de outros anos sobre interesses e práticas na escola relativas aos três temas. A perspectiva era que o aluno entrevistasse pessoas que apesar de matriculadas na mesma escola e turno, cursam ano diferente, estudam temas e têm professores também diversos. Na terceira parte eles entrevistaram pessoas da sua convivência, mas sem vínculo direto com a escola. A maior parte dos estudantes entrevistou parentes e vizinhos.

 

O objetivo das três etapas foi fazer com que os alunos conheçam e reflitam sobre a Arte, Cultura e Tecnologia a partir de perspectivas diversas. Inicialmente eles abordaram seus próprios interesses e visões sobre o tema, bem como, suas práticas e opiniões sobre como eles estão presentes na escola e na sua comunidade. A seguir, tomam contato com os pontos de vista de outros colegas da escola que estudam em anos diferentes, experiências semelhantes (mesmo corte etário, educacional, social, etc.), mas nunca idênticas. Depois partem para um público mais diversificado (idade, profissão e escolaridade, por exemplo), mas que compartilha alguma comunidade do aluno (mesmo bairro, condomínio, associação, igreja, entre outras). Esse entrecruzamento permite o aluno vislumbrar e questionar-se sobre perspectivas diversas relativas a um mesmo tema, a atentar para similitudes e diferenças. A reunião dos dados dessas três rodadas de entrevistas possibilitou a produção de panoramas de dados relacionados à comunidade escolar em sentido amplo, os estudantes coletaram cerca de 250 respostas no total (cada aluno foi orientado a realizar uma entrevista a cada uma das três etapas).

 

O uso de pesquisas censitárias no ensino vai além da coleta dessa massa de informações. O exame dela é uma das atividades mais relevantes do trabalho e que permite inclusive práticas interdisciplinares. A produção e análise de tabelas e gráficos, por exemplo, faz parte dos objetos de conhecimento e competências da Matemática e Língua Portuguesa no Ensino Fundamental Anos Finais na BNCC (2018). Já as formas como os grupos utilizam e transformam os espaços, artes e tecnologias a partir de determinada identidade cultural é tema recorrente nos estudos da Geografia e do Ensino Religioso.

 

 Dada a pandemia, foram realizadas diversas alterações no calendário do ano letivo de 2020 da rede municipal. Por conta disso, ele se estendeu sobre 2021 e a análise dos dados dos censos ainda serão realizadas. O próximo passo é justamente estabelecer elos com essas disciplinas para que, sob orientação dos professores, os alunos utilizem os dados preliminares do Google Forms e produzam suas próprias tabelas, representações gráficas e análises desse extenso corpo de informações. A proposta é estabelecer as pontes no momento em que os alunos estejam estudando assuntos que permitam uma conexão entre temas e metodologias.

 

Cada uma das diversas etapas desde a formulação das questões até a análise e apresentação dos dados finais, passando pela série de entrevistas e lançamentos de dados no sistema de formulários online, permite a abordagem de diversos pontos relevantes para o Ensino de História. Inicialmente a compreensão das pesquisas censitárias como produtos históricos vinculados a lógica de Estado e a importância da produção e acesso a dados para promoção de políticas públicas. A produção dos questionários e realização dos recenseamentos possibilita um confronto de perspectivas e a contextualização de dimensões políticas, sociais e culturais da realidade a partir de questões fundamentais da História. A adaptação de plataformas como o Google Formulários e seu uso educacional para pesquisa é um investimento nos diversos letramentos digitais envolvidos na apropriação crítica e domínio de linguagens e culturas do mundo digital. Por fim, a apresentação e análise do corpo informacional obtido permite diversas atividades interdisciplinares com os saberes de áreas como a Matemática e a Geografia.

 

Referências biográficas

João Gilberto Neves Saraiva é professor de História na Rede Municipal de Parnamirim-RN e desenvolve pesquisas em História e Educação sobre as relações entre Poder, Mídia e Tecnologias. Possui Doutorado em História pela UFF (2019), Mestrado (2015) e Graduação (2012) em História pela UFRN. É também escritor e programador. https://0jonjo.github.io/0jonjo/

 

Referências bibliográficas

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília: MEC/CONSED/ UNDIME, 2018. Disponível em http://download.basenacionalcomum.mec.gov.br/ Acesso em: 10 jan. 2020.

 

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Professor de História desenvolve jogo inovador utilizando apenas formulário do Google (Notícia). In: Café História: história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/professor-de-historia-cria-jogo-inovador. Publicado em: 1 mai. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: 10 dez. 2020.

 

DUDENEY, Gavin; HOCKLY, Nicky; PEGRUM, Mark, Letramentos Digitais. São Paulo: Parábola, 2016.

 

HISTORIAR-SE. Como usar o Google Forms em Sala de Aula. [Produzido por] Cadu Barzotto. 2 mai. 2021. 1 vídeo (10 min). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9m4thukPztM Acesso em: 2 mai. 2021.

 

IBGE. Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101705_informativo.pdf Acesso em 10 jan. 2021.

 

IBGE. Estatísticas Históricas do Brasil: Séries econômicas, demigráficas e sociais de 1500 a 1985. Rio de Janeiro: IBGE, 1987. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv17983_v3.pdf Acesso em: 2 abr. 2021.

 

ROCHA, Camilo. O novo cancelamento do Censo. E a falta de perspectiva para fazê-lo. Nexo Jornal, São Paulo, 23 abr. 2021. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/04/23/O-novo-cancelamento-do-Censo.-E-a-falta-de-perspectiva-para-fazê-lo Acesso em: 24 abr. 2021.

 

SARAIVA, João Gilberto N. Por que ainda criar um blog em tempos de Instagram? Revendo possibilidades numa experiência de Ensino de História na 'Galáxia dos Celulares'. In: BUENO, André; NETO, José Maria. (Org.). Ensino de História: Mídias e Tecnologias. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UERJ, 2020. Disponível em https://simpohis2020midias.blogspot.com/p/joao-gilberto-neves-saraiva.html Acesso em 10 dez. 2020.

2 comentários:

  1. Olá, gostaria que você comentasse as implicações éticas da utilização de formulários on line como instrumento de coleta de dados, considerando a crescente demanda de que projetos de ciências humanas sejam submetidos a comitês de ética.

    ResponderExcluir
  2. Olá,

    Como bem disse, a coleta e especialmente o uso de dados em pesquisas tem mesmo diversas implicações éticas e que precisam ser esclarecidas no projeto. No caso dessa experiência, ela foi pensada unicamente como uma atividade escolar e os entrevistados tinham ciência do seu uso. Não disponibilizamos os dados coletados - considerados sensíveis - para nenhuma outra atividade que não estritamente o trabalho dos alunos. Não é a toa que não colocamos neste pequeno texto - ou em qualquer outro - qualquer amostra dos do que foi obtido. Para tal, creio, seria necessário autorização de uso das centenas de entrevistados que responderam as entrevistas dos alunos. Após a etapa final em que os discentes analisarão os dados, a perspectiva é excluí-los

    Se alguém quiser realizar um trabalho semelhante, mas ao invés do descarte, pense mobilizar a massa de informações obtidas em pesquisas acadêmicas, publicações, etc. teria que ter a anuência formal dos entrevistados.

    Para além disso, do ponto de vista técnico, há de ser pensar na questão da política de privacidade da aplicação a ser utilizada. Um dos problemas do trabalho com o Google Forms - e também outros concorrentes - é que não é tão simples identificar quais os limites dos usos que eles fazem com os dados que são inseridos na plataforma. A política de privacidade do Google, por exemplo, é expressa em termos genéricos. Este é o link para ela: https://policies.google.com/privacy?hl=pt-BR

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.